Conto Original de: Anderson Rodrigues
“Tudo começou com um pedido de uma amiga.
Esse conto é basicamente sobre a vida após a
morte, e creio que todos temos essa dúvida sobre o lado de lá. Esse conto é
sobre o poder e a influência que o lado de lá tem sobre o nosso lado.
Não é sobre religião, não é sobre acreditar na
vida após a morte. Cada um tem sua duvida para o que nos aguarda do lado de lá.
Se existe um enorme vazio, ou se existe o paraíso ou o inferno. Ou se apenas
morremos para evoluir. Eu não sei bem no que acredito, mas acho que a cada dia
o que acredito vai tomando forma. Por enquanto, ainda é algo bem abstrato, e aí
está a mágica da vida: duvida.
Pode apostar que a duvida é uma dádiva, porque
nos faz pensar, questionar. Aqueles que já se consideram sábios demais e a
dúvida não se faz presente, pena dessas pessoas. Porque da vida, não sabemos de
nada. E nem o que levamos dela.”
1
Sara olhava os desenhos que as nuvens. A leve
brisa que soprava sobre o seu rosto, a paz que invadia seu corpo. Sobre o peito
estava um livro que demorou meses para terminar, e a demora estava mais para a
correria dos dias que se passaram arrastados, do que por conta do tamanho dele.
Ela observava os pássaros que passavam, e
sentia naquele momento a mesma liberdade. A vida ultimamente tinha sido
difícil, mas ela sentia a vontade de continuar, de lutar diariamente, embora no
final já soubesse o que aconteceria.
Sara fechou os olhos quando foi pega por uma
rajada de vento frio, e sentiu cada músculo se contrair, e sorriu o riso tímido
de sempre, o riso que aquele homem gostava, o homem que ela sempre se via
apaixonada dia após dia. Ela fechou seus olhos, o vento forte soprava, e ela
tentava imaginar suas mãos sobre as dele, abraço sempre quente, o beijo.
Alguém se aproximava, mas ela não se importava
de ouvir passos que pareciam longe demais para se importar com aquilo. Queria
pensar em Jonasy. Ele era o motivo dela sempre querer mais, de alimentar a
vontade nela. Ela estava sentindo falta, mas ainda faltava tempo para poder
vê-lo, e ela entendia isso, estava se acostumando com isso. Em seu intimo, a
saudade a sufocava, os lugares pareciam pequenos, as pessoas pareciam tolas.
Mas tinha que ser forte, se mostrar resistente, tinha que estar bem consigo
mesma para quando o visse, ele não sentisse que ela sofre durante todo esse
tempo. Mas a verdade, apenas ela sabia. Ou ela achava isso.
- Está pensando em Jonasy de novo? – Disse o
homem extremamente magro e alto.
- Como todos os dias. Tem três anos, e a cada
dia que passa tudo fica mais cinza. A saudade as vezes dói. - Ela viu o sorriso
no rosto pálido do homem.
Sara já não se importava com o fato de ser
sincera demais quando conversava com ele. Desde que o conhecera, ela sentiu paz
ao seu lado, alguém que ela poderia confiar, e ela confiava.
- Sabe a saudade realmente dói. Mas ao mesmo
tempo é um alento.
Sara o encarou.
- A saudade serve para nos lembrar de que nos
importamos, mesmo que o tempo tenha se esgotado.
Sara colocou o braço sobre os olhos e começou
a chorar. O homem sentou ao seu lado, e colocou a mão levemente sobre a mão que
segurava o livro sobre o peito. Sara começou a soluçar. Os dias eram difíceis
sem Jonasy, o tempo definitivamente havia parado.
- Você se prendeu até nesse livro para poder
passar o tempo. Perder seu tempo de três em três meses não vai funcionar. O
tempo não vai andar mais rápido, para fazer com que você o veja logo. Tudo tem
seu tempo Sara.
“Eu entendo como você se sente. Bem. Em
partes, certo?”
- Talvez entenda, mas Anthony. – Ela suspira,
e o pesar em sua voz se mostra. - Queria tanto vê-lo. Eu preciso vê-lo. Sinto
que ele não está bem, e se não estiver?
- Quem não está bem é você, Sara. Se continuar
com essa carga negativa, vai afetá-lo, e realmente, ele não ficará bem.
Sara matinha os olhos fechados, o canto da
boca agora sangrava. Ela detestava a mania que tinha. Sempre que ficava
nervosa, ela mordia os lábios. O estomago também doía. Todo seu corpo estava
doendo. Naquele instante o mundo parecia que a engoliria.
- Anthony, o que preciso fazer para vê-lo?
- Ele tem que estar pronto.
Sara agora estava se sentando, os olhos
vermelhos e inchados. Ela olhou nos olhos de Anthony, o encarava com raiva.
Jamais o olhou assim, e ela sentiu a surpresa dele, ele era o tipo que se
entregava pelo olhar. A serenidade nos olhos de Anthony por um momento pareceu
ter passado.
- Antes, eu era quem deveria estar pronta.
Vejo que você não quer me ajudar! – Gritou.
Anthony baixou a cabeça, e deu uma gargalhada
tão escandalosa quanto o grito de Sara. Ela sentiu seu rosto queimar, uma
mistura de raiva e vergonha. Ela continuava olhando para aquele homem magro,
que ria infantilmente.
- Sara, já tivemos essa conversa. Não é tão
simples assim para ver ou conversar com alguém do outro lado. Tente entender! –
Anthony voltou a ter o ar serio de antes.
“O
outro lado”, pensou Sara. Ela tentava se
acostumar com a ideia, três anos já haviam passado, e ela ainda não acreditava
nessa história de outro lado.
- Vamos fazer o seguinte? – Anthony olhava
para a capa do livro que Sara segurava.
Ela apenas o encarou.
- Me conte como o conheceu. Talvez te faça
bem. Nos conhecemos há três anos e não conheço muito bem esse Jonasy.
Ela observou o olhar fixo de Anthony para o
livro, e se perguntou se ele prestaria atenção ao que ela estaria contando, ou
se ele ficaria vagando dentro de sua cabeça, enquanto encarava a capa de “A
dança da Morte”.
Ela decidiu contar.
2
“Naquele dia, o céu não estava limpo e claro
como o de hoje. Na verdade, como ultimamente tem estado, né? Lembro que estava
sentada na mesa em uma praça. Não na cadeira, mas na mesa, bem no centro dela,
com os as pernas cruzadas, e curvada sobre o livro. Era esse mesmo livro que eu
lia naquele dia. Mas eu não estava prestando atenção a leitura, eu apenas
olhava a página e a bagunça de letras que se formavam sobre os meus olhos. Eu
estava concentrada em tudo. No som das crianças correndo, em seus gritos.
Algumas choravam. Nos pais que sorriam e contavam histórias sobre seus filhos.
Menos no livro. Quando ele chegou.
- Que bela bíblia.
Ele estava parado em minha frente, sorria. E
eu senti meu corpo vibrar ao olha-lo, sentir aquele olhar me cortando, como se
quisesse decifrar meus segredos. Me apaixonei no mesmo segundo, e acho que
aconteceu o mesmo com ele. Olhava aqueles olhos âmbar. O pouco de Sol que tinha
naquele dia, deixava o olho dele no mais belo tom de verde que você pode
imaginar. O olhar sério e decidido que ele tinha, combinava com o meu perdido.
Daquele dia em diante, esse livro se tornou o
meu favorito. Jonasy até escreveu nesse livro pra mim, e hoje em dia, é o que
eu mais leio ‘Quando se sentir na beira do abismo, leia esse livro e tente
imaginar o fim do mundo diferente desse. Porque esse fim do mundo seria
fichinha para o que nos aguarda no futuro. Mas eu sei de uma coisa, não importa
quando ou onde seja o fim, eu estarei no fim do mundo por você.’
Eu decorei, porque depois de tanto tempo lendo
isso acabamos decorando.
Com ele as horas passavam depressa, e eu me
via cada vez mais apaixonada. Ele me amava, eu sei disso, e sinto isso. A forma
que ele me olhava e acreditava em mim. Tendo ele comigo, senti pela primeira
vez que poderia sair do meu fantástico mundo, e poderia enfim, embarcar nessa
loucura do dia a dia.
Os sonhos se unificaram, os planos estavam
sendo formados e executados. As famílias já se conheciam bem. Eu já me via
chorando enquanto caminhava ao altar. A vida por enquanto era justa, e eu
sentia que era com ele que iria me casar, ter filhos. Eu sonhava com isso,
entende?
Até que há três anos tudo começou a mudar.
Aquela doença maldita que entrou em nossas vidas. Privou-nos fazendo com que
nossos planos fossem adiados. Foram os cinco meses mais difíceis de nossas
vidas. O tratamento era horrível, as madrugadas eram um tormento. Os médicos
deram apenas dois meses de vida, mas já estava chegando no quinto, o que nos
fez começar a acreditar que estava ocorrendo um milagre. Internações eram
rotinas, mas naquela altura, algo estava deixando nosso amor forte, algo nos
mantinha cada vez mais unidos. Até que chegou o quinto e ultimo mês.
Lembro de olhar para o rosto dele, e ter dito
que o amava. Isso eu disse antes do fim. E sei que ele também disse. Eu queria
apenas olhar aqueles olhos de novo e sentir que está tudo bem.”
3
Sara olhou para Anthony e percebeu que ele
continuava olhando para o livro. Ela não sentiu raiva naquele momento, ela
apenas se sentiu bem, entendeu que talvez Anthony não queria escutar a
história, mas queria fazê-la se sentir melhor. E estava se sentindo melhor.
- Sara, me acompanhe. – Anthony levantou.
Ele seguiu andando sem olhar para trás, e Sara
seguia logo atrás. Começou a suspeitar sobre o que Anthony estava fazendo.
- Onde vamos Anthony?
Ele se manteve calado. Chegaram a casa de
Anthony. Sara olhou a entrada. Conhecia Anthony tinha três anos, e nunca havia
ido até a casa dele. Mas sabia que ele morava lá, era a cara dele. Ela riu ao
pensar nisso.
- Entre Sara. – Disse Anthony da porta.
Sara entrou.
Eles caminharam até o escritório da casa, e
ele pediu a ela que deitasse no divã que ele tinha.
- Não sabia que você era terapeuta.
- Não sou. Isso serve apenas para meu
descanso, e descanso de quem eu achar que mereça deitar nele. Agora deite.
Sara deitou, e no mesmo instante sentiu o peso
de seu corpo acabar. Foi tomada por uma leveza que não sabia como explicar.
- Tome. –Anthony colocou o livro na colo de
Sara. – Agora feche os olhos e pense em Jonasy.
Sara pensou.
- Não acho que isso vá funcionar, Anthony.
Quando abriu os olhos, Sara não estava mais na
casa de Anthony. Estava em outro escritório, em pé no canto. Começou a andar
pelo escritório, observando todos aqueles livros. A porta abriu, e escutou aquela
voz acompanhada da voz de outra pessoa.
- Jonsasy Lexter, não pense que essa reunião
vai ser fácil. Todos estarão lá querendo nos comer vivos. Eu estou preocupado.
Me admira muita você não estar.
- Você se preocupa atoa Marcus. Eu estou
confiante. Nervoso. Mas confiante. Tudo dará certo.
Sara parou de prestar atenção na conversa, e
sentiu as lágrimas caírem. Ela sorria enquanto as lágrimas borravam sua visão.
Seu corpo tremia, era ele. Era Jonasy quem ela estava olhando de novo. Ela
chegou perto dele, e sentiu o mesmo perfume de antes, o mesmo olhar de sempre.
Ele estava bem.
- Você conseguiu meu amor. Você está
conseguindo subir na vida. – Sara o abraçou, mas sabia que Jonasy não sentiria
aquele abraço.
Ela ficou até o final daquele dia observando o
homem que ela amava, observando as coisas que ele fazia durante o dia. Três
anos haviam se passado, e ele continuava o mesmo. Mas sentiu que algo faltava
para ele. Ela sentiu que de alguma forma o estava prendendo a ela. Ela via a
linha que os conectava, agora era fraca, mas ainda estava lá. Tinha uma a mais.
Outra que ligava Jonesy a outra pessoa. Ela percebeu e se sentiu feliz. Era a
felicidade dele que importava.
Ela lembrou quando Jonasy contou a ela sobre a
lenda de ‘Akai Ito’, e como ele acreditava. Mas depois do que aconteceu a ela,
era certo de que qualquer coisa que regesse a tudo isso colocaria outra pessoa
em sua vida.
Ela seguiu a linha e encontrou uma moça, ela
estava sentada, tomava um café enquanto lia um livro. Sara sorriu.
Ao voltar para Jonasy, viu como ele estava
bem, era o que ela precisava saber. Naquele instante, ela se lembrou dos longos
momentos que passaram juntos, como a felicidade existia entre eles. Lembrou-se
da última semana de vida, onde já estava sedada, e os médicos já haviam dito
para a família aguardar. Ela começou a pensar no ultimo dia, quando estava se
sentindo fora do corpo, e lutou até o último segundo para se manter ali até que
Jonasy a visse pela ultima vez. Ela a viu, e disse que o amava. Ela sabia que
ele não ouviu, mas ele sentiu esse amor. Ele apenas escutou o ultimo suspiro. Sara
sabia que para ela acabava ali, mas que para Jonasy era apenas o começo de uma
nova história. Ela continuou acreditando nele, e ele conseguiu chegar onde
queria. Se não chegou, estava perto. Ficou feliz por saber que o amor para o
Jonasy estava próximo. Isso a deixou feliz.
Ela conseguiu olhar mais uma vez para os olhos
quase verdes do homem que ela amava. Ela conseguiu se sentir bem e feliz, e
agora estava pronta para descansar e evoluir. Assim como tudo na terra um dia
iria passar.
Jonasy ao acordar, sorriu. Em cima de sua cama
estava o livro de Sara, aberto na pagina onde tinha sua letra. Ele se lembrou
do que escrevera ali, e sorriu. A vida agora podia continuar.
- Para minha mãe. Para a Débora. Para Soraya.
Para os que acreditam.
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